Entrevista de Pedro Afonso ao Jornal de Negócios

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Pedro Afonso entrevista Jornal Negócios
“Se as empresas querem aumentar a produtividade, ponham os funcionários a trabalhar menos horas”, atira o psiquiatra Pedro Afonso, autor do livro “Quando a mente adoece”, lançado na AESE – Escola de Direcção e Negócios.

“Há mulheres em licença de maternidade pressionadas pelas empresas para consultar os ‘e-mails’ de trabalho. Eu conheço vários casos”, conta o psiquiatra Pedro Afonso, autor do livro “Quando a mente adoece”, lançado na AESE – Escola de Direcção e Negócios, onde dá aulas a gestores e empresários. Ele tenta provocar o debate. E provoca. “Há uma cultura crescente de invasão da vida profissional na vida pessoal”, diz. E continua. “Se as empresas querem aumentar a produtividade, ponham os funcionários a trabalhar menos horas”. E continua ainda. “As empresas estão a sugar-nos a saúde e a nossa qualidade de vida. E isto não é dramatismo. Toda a gente funciona muito no do ‘dar, dar e dar’ e, às tantas, está tudo sequestrado por esta cultura, que é uma cultura autofágica, que absorve as pessoas e as destrói”. Há um limite. Que é o limite humano, diz.

Temos pensado pouco sobre a relação que temos com o mundo do trabalho. Enquanto psiquiatra e professor na AESE – Escola de Direcção e Negócios, tento provocar alguma discussão em torno dos limites humanos. Há, claramente, um divórcio entre as características humanas e aquilo que está a ser exigido às pessoas. Eu diria mesmo que se as empresas querem aumentar a produtividade, ponham os funcionários a trabalhar menos horas. Se não existir um equilíbrio, não só diminuímos a produtividade como colocamos a nossa saúde em risco. As doenças psíquicas no mundo do trabalho, como as perturbações da ansiedade e os quadros depressivos, têm vindo a aumentar.

Mas o que está em causa não é só o número de horas de trabalho. É a pressão para chegar a resultados em menos tempo e com menos pessoas. Face a políticas de reformas antecipadas ou de rescisões por mútuo acordo, por exemplo, quem sai não é substituído e quem fica é sobrecarregado com o trabalho dos que se reformam ou rescindem. É uma política muito usual. E isto tem um limite. Que é o tal limite humano.

É preciso alertar as mentalidades que o preço a pagar por um quadro depressivo ou por um quadro de exaustão, em termos de absentismo, é muito maior do que apostar na sua prevenção. Há pessoas que suportam mais a pressão, mas todos nós, mais cedo ou mais tarde, acabamos por sofrer as consequências. Os trabalhadores devem tentar, eles próprios, proteger-se. Eu costumo dizer aos meus doentes para devolverem a responsabilidade. Quando alguém é assoberbado de trabalho e sabe, à partida, que não vai conseguir cumprir tudo aquilo que lhe foi proposto, deve remeter a escolha do que fica para fazer para a chefia: ‘eu não consigo fazer tudo no prazo indicado. Peço-lhe que me indique o que é que eu vou deixar de fazer e o que é que é mais importante. Ou, em alternativa, tem de alocar uma pessoa para me ajudar’. É preciso fazer esse confronto.

A pressão para os resultados é transmitida de cima para baixo, os próprios gestores estão sob imensa pressão, e tudo isto acaba por ser uma correia de transmissão. É algo transmitido aos directores, às chefias e a todos os funcionários. É um sequestro global. Há, de facto, um certo endeusamento do trabalho. Toda a gente funciona muito nesse registo do “dar, dar e dar” e, às tantas, está tudo sequestrado por esta cultura, que é uma cultura autofágica, que absorve as pessoas e as destrói.

Há uma cultura crescente de invasão da vida profissional na vida pessoal. Não imagina a quantidade de doentes meus que estão constantemente a responder a ‘e-mails’ de trabalho em período de férias. Já não se respeita o período em que a pessoa deve estar desligada do trabalho. Já não se respeita as mulheres em licença de maternidade. Tenho conhecido vários casos. Ao fim de um mês de licença, as empresas quase que exigem a consulta dos ‘e-mails’. Há uma cultura empresarial perversa.

Também se assiste a alguma encenação no local de trabalho. Certas pessoas reconhecem que, muitas vezes, não estão propriamente a produzir, mas sentem uma certa obrigação de estarem presentes. Há esta mentalidade… A Google criou os chamados “nap rooms” para os funcionários fazerem pequenas sestas. Em Portugal, isto poderia ser visto como um período de ociosidade e até de irresponsabilidade. Mas está demonstrado que dormir uma pequena sesta aumenta a produtividade e a concentração. Portanto, há que introduzir, na cultura das empresas, estas formas inteligentes de gestão. A verdade é que assistimos a uma certa regressão. E o chamado “multitasking” não ajuda. É improdutivo. Mas instalou-se na nossa cultura. Ninguém hoje em dia pratica o “monotasking”.

Se há imensas pessoas pressionadas pelos resultados das empresas, mais recentemente também tenho visto pessoas com propostas de rescisões de contrato que ficam deprimidíssimas. Têm cerca de cinquenta e poucos anos e nunca imaginaram que a sua carreira ficaria interrompida tão cedo e que, muito provavelmente, nunca mais iriam regressar ao mercado de trabalho. É toda uma vida profissional que, subitamente, fica interrompida. E isso gera um período de perplexidade e de despersonalização. Nós temos uma certa fusão com aquilo que fazemos e se isso nos é retirado de repente, há uma parte de nós que acaba por morrer.

Andamos num corrupio e a vida passa demasiado depressa. Eu conto a história de uma directora que investiu maciçamente na carreira e, com perto dos 50 anos, percebeu que não havia muito mais para conquistar e caiu numa grande depressão. É importante que, paralelamente à gestão da carreira profissional e à conciliação com a família, as pessoas possam, de alguma forma, criar o seu projecto de vida. Muitas delas deixam os seus pequenos sonhos para a reforma, seja um curso de pintura, de fotografia ou uma viagem. Por que não conciliar estes sonhos com a vida profissional? Mas, para isso, é preciso tempo. Tempo e energia, porque a energia é maciçamente consumida no local de trabalho.

Enquanto psiquiatra, gostava de alertar para uma outra questão, que está a ser discutida por sociólogos e psicólogos nos Estados Unidos, que é o chamado trabalho sombra, o “shadow work”. Um trabalho que está a ser transferido para os consumidores de forma a diminuir os custos de produção das empresas. Vamos a uma bomba de gasolina e temos de ser nós a encher o tanque do carro. Vamos às compras e temos de fazer os embrulhos de Natal. Oferecem-nos os laços e o papel… Até o trabalho do caixa de supermercado está a ser substituído por máquinas automáticas. Há aqui um trabalho oculto que, no final do dia, origina um grande desgaste cumulativo.

Um psiquiatra é um bocadinho como o poeta. Olha para as coisas de uma forma um bocadinho diferente. Ser psiquiatra é procurar perceber, é procurar compreender. E, para se ser psiquiatra, é preciso, acima de tudo, capacidade de escutar e de se colocar no lugar do outro. É a chamada empatia. Uma pessoa que pertença a um estrato social privilegiado, que tenha sido educada em bons colégios numa zona social óptima, e que nunca tenha contactado com a miséria humana, não percebe, de facto, as dificuldades das pessoas mais desfavorecidas. Que é o caso da maior parte dos nossos políticos…

Na política, por vezes, até pode haver empatia, mas falta compaixão. A compaixão pressupõe que, activamente, se alivie o sofrimento do outro. Há o chamado Síndrome de Hubris (adição ao poder), que tem a ver com a transformação da personalidade pela permanência prolongada em cargos de poder. O que acaba, muitas vezes, por aumentar o distanciamento e fazer desaparecer a empatia. E isso pressente-se nos discursos. As palavras até estão lá, mas falta a componente emocional. Há uma dissociação entre as palavras e a emoção. Soa a falso.

retirado do site Jornal de Negócios

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